Com o fim da lei do passe, o jogador de futebol passou a ser livre para assinar contrato com o clube que lhe oferecesse a melhor proposta e boas condições de trabalho. O que nem todos sabem é que quase três décadas antes da entrada em vigor da Lei Pelé, um jogador entrou na justiça e conseguiu ser o dono do seu próprio destino nos gramados.
Afonso Celso Garcia Reis, ou simplesmente Afonsinho, tem uma história que foge do estereótipo do boleiro em vários aspectos. A começar pela sua infância junto a uma família de classe média do interior de São Paulo. Filho de um telegrafista que se tornou advogado e militava na área de educação e de uma professora primária, o atleta se acostumou desde pequeno a uma criação com ideais libertários, como gosta de definir.
"Meu pai nunca se conformou com esse negócio de passe. Fui para o Rio de Janeiro com 17 anos para jogar nos juniores do Botafogo, e logo subi para o profissional. Mas me recusava a assinar o contrato de gaveta, que era o instrumento que os clubes tinham para prender o jogador", conta.
Porém, com o tempo ficou insustentável a situação e ele teve de assinar o documento para continuar no clube. Foi então que começaram alguns problemas de relacionamento com a comissão técnica e treinadores. "Me destaquei em 65. Logo depois, o Zagallo entrou como treinador e eu acabei perdendo espaço para o Carlos Alberto. Como eu estava sem jogar, outros clubes se interessaram no meu futebol, mas o Botafogo não liberava", lembra.
Passado um tempo, meia finalmente acabou emprestado para o Olaria, que fez uma boa campanhal. Na hora de retornar para o Botafogo, no entanto, os dirigentes não queriam aceitar sua reapresentação, alegando que ele precisaria cortar a barba e o cabelo, que estavam grandes. "Chegaram até a me chamar de cantor de iê iê iê, mas na verdade era só um pretexto, pois o real motivo eram nossas divergências internas. Depois eles me proibiram de treinar e impediram a rouparia de me dar material esportivo."
A situação chegou a tal ponto que Afonsinho conta a única alternativa para seguir na carreira seria tentar sua liberação na justiça. "Eram julgamentos entre aspas, pois o que eu pedia ia contra o interesse de todos os clubes. Um dos juízes chegou a dizer que era a favor de proibir que o atleta dirigisse, para preserva o patrimônio do clube. Um absurdo, mas era assim que a gente vivia", diz.
O que nem o jogador nem os dirigentes imaginavam é que o caso ganharia repercussão nacional, e tomaria um vulto político em plena ditadura militar, gerando manifestações nas ruas. "Até as dondocas da alta sociedade tinham opinião sobre o assunto. Daí a CBF decidiu abafar e me deram o passe livre por unanimidade. Logo depois aconteceu o mesmo como Raul Plassmann e com o Spencer, ambos do Cruzeiro."
Dono do seu próprio destino no futebol em 1971, quando tinha 24 aos, Afonsinho passou a ser uma exceção no mercado, e negociou bons contratos com Flamengo e Santos. Mas novos problemas surgiram, pois a situação chegou até a causar ciúme em colegas de clube, e alguns times o deixavam sem jogar quando seu contrato estava chegando no fim, para que não aparecessem interessados. Além disso, ele nunca mais tive espaço na seleção brasileira
"Após a Copa de 1970, o Gérson, que jogava na minha posição, anunciou que não defenderia mais o país, e nem assim me chamaram. Mas não me arrependo. Mesmo tendo prejudicado minha trajetória com a camisa verde e amarela, acho que minha posição foi acertada", diz.
Carreira paralela
Não é apenas na questão do passe livre que Afonsinho foi pioneiro. Anos antes de Sócrates se formar médico enquanto jogava futebol, o botafoguense fez o mesmo. Ele afirma que todo o impasse em torno do seu contrato durou dois anos, e isso o ajudou a se concentrar nos estudos. Depois, ele sempre negociava folgas em treinos e trabalhava separadamente com o preparador físico. "A incerteza na carreira de jogador é grande, pois ela é muito curta. Por isso, assim que fui para o Rio de Janeiro entrei na faculdade de medicina, e me formei em 74."
Ele também cita a importância da democracia corintiana como fundamental para que os jogadores ampliassem seus direitos, e vê a falta de participação de atletas e torcedores nas decisões como o maior problema da atual estrutura do futebol. "Quando um presidente de clube assina um contrato de patrocínio de camisa, ele está vendendo o torcedor enquanto potencial consumidor para essa marca, como se ele fosse um boi de corte. Nós convivemos com formas feudais de organização, e isso é um problema da sociedade, pois o tênis, basquete, vôlei e judô também já passaram pela mesma situação", afirma.
|